Quando descobri que era um instrumento

 


Queria escrever sobre um chamado.
Foi a Mariza Corrêa, ela que me chamou. Desde o mundo dos mortos.
Dizem que o sangue menstrual têm poderes psicotrópicos. Leva a estados alterados da consciência.
Eu conheço esse tipo de lugar, já estive nele algumas vezes, levada por diferentes substâncias. Eu conheço o tipo de conhecimento que circula por ali. É um conhecimento cósmico que se integra e se desintegra em redemoinhos de imagens sinestésicas capazes de provocar assombros microscópicos. Não sei ao certo dizer se isso é divertido ou assustador. Talvez os dois, ao mesmo tempo.
Pois bem, digamos que eu fiz um trabalho com meu sangue menstrual. Não sei ao certo que tipo de trabalho. Um trabalho do tipo daqueles que poderia ter sido feito em um laboratório. Mas também um trabalho do tipo daqueles que poderia ter sido feito na encruzilhada. Talvez os dois, ao mesmo tempo.
Dos turbilhões de imagens sinestésicas que encontrei durante este trabalho, pouca coisa consegui resgatar (mas muito mais coisa do que jamais resgatei das outras vezes que estive neste tempo-espaço outro). Foram algumas fotografias e filmagens que fiz com a câmera do meu celular, que estava atrelada à um mecanismo simples mais engenhoso, um microscópico que eu mesma tinha construído.
É esquisito se sentir um instrumento. É assim que eu me sinto agora. Mais ou menos como meu microscópico, por onde passaram minhas vontades, desejos e intensões de estabelecer um relacionamento ardente com meu sangue menstrual. Me sinto um canal de vontades, desejos e intensões de um outro alguém, que está de bruços sobre nós - eu e a coisa que realmente interessa. Eu sou desinteressante. É a coisa que interessa, e interessa tanto que por vezes eu simplesmente desapareço da equação, sou esquecida porém manipulada - não num sentido ruim, não mesmo. Eu sou tocada. E tenho certeza que foi a Mariza Corrêa que me tocou.
Pois levava o nome dela, Mariza Corrêa, o prêmio que ganhei com as fotografias microscópicas do meu sangue menstrual. Prêmio Mariza Corrẽa de Antropologia Visual.
É esquisito se sentir um instrumento talvez porque a gente passe a maior parte do tempo sendo quem manipula. Mas a sensação de ser tocada não é ruim não. É surpreendente, isso com certeza. Percebi assim de sopetão. Foi no meio de uma leitura, que agora até duvido que tenha sido uma leitura mesmo. Foi um sussurro intramundos. Foram as palavras morta-vivas que a Maria Corrêa me trasmitiu por telepatia. Pensando bem, não foi assim tão repentino. A cada frase que saltava o tempo-espaço e pulava do momento em que ela escreveu para o momento em que eu li, a cada frase que ela sussurrava em meu cérebro eu ia entendendo o que estava acontecendo. Eu entendia que ela estava me tocando. Eu sentia progressivamente a sua presença.
Foi como quando cai de skate descendo uma ladeira. Eu sabia o que ia acontecer momentos antes, mas essa consciência não amenizou o impacto da queda, nem o sangue escorrendo do meu joelho depois. Muito menos as dores no corpo nos dias que se seguiram.
Eu nunca imaginei pesquisar o que estou pesquisando hoje. Estou terminando a reescrita do meu projeto de doutorado, um ano depois que entrei no curso. Depois de tantos anos desejando esse momento, finalmente sendo uma pesquisadora profissional. Um ano de doutorado, um ano de pandemia, e três anos depois que ganhei o prêmio Mariza Corrêa, sem nem saber quem era essa pessoa. Sem nem imaginar que iria pesquisar menstruação, muito menos antropólogas.
O que Mariza Corrêa me contou telepaticamente foi que estou aqui pra continuar um trabalho que está sendo feito a muito tempo. Começou bem antes de mim, e vai seguir adiante depois de mim. Eu não sou interessante. Nem Mariza Corrêa é. Somos instrumentos. Mas somos também quem manipula e aquilo sobre o que nos debruçamos. Assim, sabendo das emoções envolvidas em cada um desses termos e me sentindo dissolvida em cada um deles, posso seguir com alguma firmeza, aprendendo a respeitar os outros olhares-instrumentos-coisas que encontrar na jornada.
Tenho mais três anos de pesquisa. Irei atrás das expressões de experiências menstruais que etnólogas vivenciaram em campo.  


Imagem: Mariza Corrêa sob meus efeitos.

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